Vistos etc.
O Ministério Público, com base no Auto de Prisão em Flagrante n. 93, ofereceu denúncia contra Sigismund Schlomo Freud, austriaco, solteiro, natural de Freiberg in Mähren, nascido em 06 de maio de 1856, filho de Amalia Nathansohn e Jakob Freud, residente na Rua X, dando-o como incurso nas sanções do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, pela prática dos seguintes fatos delituosos assim descritos na exordial acusatória (fls. 80/81).
No dia 5 de fevereiro de 2014, por volta das 11 horas, policiais militares montaram uma blitz de rotina na Rua Y, em frente à Comércio X, no bairro Z.
Em dado momento verificaram que o veículo Chevette Tubarão, de cor preta, placas AAA-3333, agiu de forma atípica, pois parou e mudou de direção para evitar a blitz, razão pela qual os agentes públicos resolveram abordá-lo para verificar a situação.
Um pouco mais a frente, próximo ao Condomínio Y, o mencionado veículo foi interceptado e, depois de realizadas revistas em seu interior, foram encontrados e apreendidos, alocados embaixo do banco traseiro, 7 (sete) torrões de erva vulgarmente conhecida como 'maconha' (conforme Auto de Apreensão de fls. 12 e Laudo de Constatação 61/14 fl. 28) substância de uso proscrito em todo o território nacional, com massa bruta total de 336,1g (trezentos e trinta e seis gramas e dez decigramas), que o denunciado transportava e trazia consigo para fins comerciais, sem autorização e em desacordo com determinação legal.
Certificados os antecedentes criminais do acusado (fls. 29/31), sua prisão em flagrante foi homologada e convertida em preventiva (fls. 56/59).
O acusado formulou, por meio de Defensor constituído, pedido de liberdade provisória (fls. 32/55), que restou indeferido (fls. 56/58).
O Defensor constituído impetrou Habeas Corpus (fls. 63/77), cuja ordem foi concedida, expedindo-se alvará de soltura em favor do acusado (fl. 91). Na denúncia, que veio instruída com o Auto de Prisão em Flagrante n. 93/93, foram arroladas 02 (duas) testemunhas.
Aportaram aos autos os Laudos Periciais de Drogas Psicotrópicas (fls. 128/131) e referente à extração de evidências em aparelhos de telefonia celular (fls. 122/127).
Notificado (fl. 133), o acusado apresentou defesa preliminar, por meio de de Defensor constituído, na qual arrolou 02 (duas) testemunhas.
O Ministério Público pugnou pelo recebimento da denúncia e prosseguimento do feito, não se opondo à realização do Exame de Dependência Toxicológica (fls. 155/157).
A denúncia foi recebida em 26 de junho de 2014 (fls. 158/160).
Acostou-se aos autos o Laudo de Dependência Toxicológica (fls. 166/169).
Durante a instrução, foram inquiridas 02 (duas) testemunhas de acusação e 01 (uma) defensiva, de modo que a defesa desistiu da remanescente (fl. 182), assim como procedeu-se ao interrogatório do réu, tudo mediante registro por meio de sistema de gravação audiovisual (fls. 182/184).
Na fase de diligências, as partes nada requereram (fl. 182).
Em alegações finais orais, o Ministério Público requereu a procedência da ação penal com a consequente condenação do acusado nos termos exarados na denúncia (fl. 182).
A defesa, por sua vez, requereu a desclassificação do delito denunciado para o previso no art. 28 da Lei n. 11.343/06, uma vez que as provas coligidas não seriam suficientes para denotar a efetiva prática do tráfico de drogas pelo réu, até porque não foram encontrados quaisquer outros elementos e a quantidade, por si só, não tem o condão de caracterizar o delito denunciado (fl. 182).
É o breve relatório.
Decido:
Por não haver preliminares a serem apreciadas, passo ao exame do mérito.
1 DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS
Estatui a Lei n. 11.343/06:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Para que o delito do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06 se configure, é irrelevante a ocorrência da efetiva tradição do produto ilícito e a flagrância no ato de mercancia, basta que a conduta do réu se subsuma em um dos 18 (dezoito) verbos descritos no tipo penal.
Dito isso, a materialidade do delito restou comprovada pela apreensão de 326,1g (trezentos e vinte e seis gramas e seis decigramas) de maconha (fl. 12), cuja natureza ilícita restou demonstrada pelo Laudo Pericial de Identificação de Substância Entorpecente (fls. 128/131).
A autoria se revelou inconteste diante da prisão em flagrante do réu que tinha em seu poder a droga apreendida, bem como pela confissão judicial deste, em que confirmou ser o proprietário dos entorpecentes.
Evidenciada a quantidade de droga e sua propriedade, resta saber se o estupefaciente era para consumo próprio (conforme sustentou o réu), para comercialização, ou se para ambos.
O critério para a referida análise encontra-se prescrito no art. 28, §2º, da Lei de Tóxicos:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Inicialmente, na fase policial, o denunciado permaneceu em silêncio (fl. 05), já, em juízo, negou a destinação comercial do entorpecente apreendido, o qual seria reservado para uso pessoal, disse que na data dos fatos foi até a Rodoviária buscar a esposa que chegou de Praga perto das 04:00 horas; que arrumaram as roupas que a esposa trouxe daquela cidade para vender aqui e por volta das 09:00 horas ligou para uma pessoa, que conhecera há aproximadamente 02 (duas) semanas, para comprar maconha; que marcaram um lugar e adquiriu a droga; que ligou para o traficante de orelhão, porque ele pedia para que fosse assim; que foi até o bairro Z buscar, em uma rua de chão que dá no bairro Y; que comprou uns R$300,00 em maconha; que ele entregou em torrões embaladinhos; que guardou no banco de trás e estava indo para casa guardar; que usa desde os 16 (dezesseis) anos, mas está tentando parar. Em relação à blitz, fato que teria dado ensejo a sua prisão em flagrante, alegou que não fugiu; que a rua que utilizava para passar à caminho de casa estava obstruída pelos cones, então teve que pegar outra rua (fl. 183).
Pois bem, ao observar o contexto probatório amealhado nos autos, entendo que as condições em que se desenvolveu a ação policial, assim como a própria natureza e quantidade do entorpecente apreendido, não são suficientes para caracterizar a finalidade mercantil do material apreendido.
Certamente, não há dúvidas acerca da propriedade do estupefaciente, todavia, a mesma certeza não se verifica quanto à destinação do material (entorpecente) apreendido. Ao contrário, existem nos autos fortes indícios de que o estupefaciente encontrado era mesmo destinado ao consumo exclusivo do réu.
Ambos os policiais ouvidos contaram judicialmente que suspeitaram da atitude do acusado, pois ao avistar a blitz, o mesmo teria desviado seu caminho; que ao abordarem o veículo do réu, encontraram as drogas apreendidas nos autos, embora não soubessem apontar a quantidade apreendida.
Insta ressalta que embora o policial Arthur Schopenhauer não tenha feito menção sobre o assunto em juízo, na fase inquisitorial confirmou a versão apresentada pelo réu ao contar que (fl. 03):
[...] o conduzido alegou que tentou fugir da barreira, porque estava ciente de que carregava a droga apreendida em desconformidade com a lei; que o conduzido informou que tinha recém adquirido aqueles torrões de maconha, tendo se dirigido até o bairro X, onde, na via pública, na rua de acesso ao bairro Y, encontrou com um motociclista que lhe entregou a droga; que o conduzido alegou não saber o nome da pessoa de quem adquiriu o material [...]
Deste modo, é possível extrair alto grau de credibilidade da negativa do réu, até porque trata-se de narrativa idêntica e coerente desde o momento da abordagem.
Por outro lado, sob o crivo do contraditório, o agente público Friedrich Wilhelm Nietzsche declarou que tem conhecimento, por meio de informações de outros policiais e até mesmo do bairro onde reside, de que o acusado teria envolvimento com o tráfico de drogas exercido no local.
Trata-se, pois, do único elemento convergente no sentido de que as drogas apreendidas com o acusado poderiam se destinar ao tráfico de drogas local, o qual não encontrou respaldo em qualquer outra prova ou mesmo indício.
Em resumo, esse é o conjunto probatório produzido, o qual não é apto a oferecer qualquer elemento que indique a destinação mercantil dos entorpecentes encontrados no veículo do réu.
Vale frisar que, embora tenha sido apreendida quantidade considerável de droga (326,1g [trezentos e vinte e seis gramas e seis decigramas]), entendo que tamanha quantidade, no caso, é compreensível, uma vez que, pelo que se retira das provas coligidas, o acusado era usuário de drogas, sendo grande a possibilidade de ter adquirido àquela quantidade de entorpecentes para consumo prolongado.
Destarte, além da razoável quantidade de droga apreendida com o réu, não há qualquer outra circunstância que indique ser dedicado à narcotraficância, tais como apreensão de apetrechos (balança de precisão, elásticos, saquinhos plásticos, produtos químicos), armas.
Portanto, a conduta do acusado não se amolda à figura tipificada no art. 33 da Lei n. 11.343/2006, todavia subsume-se ao tipo legal do art. 28 da referida lei, sendo imperativa a desclassificação.
A possibilidade do magistrado dar nova definição jurídica ao fato narrado na denúncia encontra amparo no instituto da emendatio libeli, previsto no art. 383 do Código de Processo Penal:
Art. 383. O juiz poderá dar ao fato classificação jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
Assim, realizada a desclassificação, dispõe a Lei 11.343/06:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
[...] § 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
Com efeito, em vista da desclassificação, ora operada, do delito capitulado na denúncia (tráfico de drogas) para um delito de menor potencial ofensivo (art. 28 da referida Lei), deve ser observada a possibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, conforme preceitua o art. 48, §1º, da Lei 11.343/06, bem como, ainda, atendendo ao disposto no §2º do art. 383 do CPP, deve o feito ser remetido ao Juízo competente para tal.
Ante ao exposto, DESCLASSIFICO a conduta do acusado Sigismund Schlomo Freud para àquela prevista no art. 28 da Lei. 11.343/06 e, em consequência, determino a remessa dos presentes autos ao Juizado Especial Criminal de Witmarsum.
Dê-se as devidas baixas.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Witmarsum, 22 de agosto de 2016
Carl Gustav Jung
Juiz de Direito